7.14.2006

Luiza e seus cacos de vidro

Os primeiros raios de sol entravam pela janela da sala sem pedir licença e o recinto foi se enchendo de uma manhã primaveril com cheiro de infância. Ela caminhava descalça pela casa e podia ouvir sua mãe dizer-lhe para calçar as sandálias. Riu da doce lembrança. A casa já não estava cheia de crianças correndo e gritando, nem de tias na cozinha fazendo o almoço. Agora, havia apenas Luiza e seus milhões de cacos de vidro.
Fazia vitrais. Dos mais diversos tipos e cores. Construía pedaços de vida, lembranças e sensações. Passava horas mergulhada num imenso mar-cristal, selecionando cada pedacinho de vidro, identificando sua origem, se eram de garrafas, de alguma taça ou de outros vitrais. Sim. Tinha de separá-los. Para talvez depois juntar tudo de novo. Mas agora sabia o que era o quê e qual a melhor forma de uni-los.
Não era um trabalho muito fácil, necessitava de paciência e olhar apurado. E isso Luiza tinha de sobra. Era muito observadora e o tempo parecia correr lentamente, dando a ela tempo de sobra para viver cada detalhe do dia.
Luiza colava os cacos como quem reconstruía vidas. Sentia-se poderosa. Mas ela não definia de imediato o que representaria o vitral. Não queria ser Deus. Ia acomodando os pedacinhos de garrafas, taças ou outros vitrais como se lhe faltasse a visão. Não gostava nem mesmo de imaginar no que aquilo poderia se transformar. Preferia caminhar no escuro, apalpando as paredes, mesmo que no final verificasse que o resultado deixou a desejar. Fazer o quê? É assim que as coisas são construídas no fim das contas. Além do mais, seus vitrais não eram meros pedaços quebrados de alguma coisa: eram sua vida, reconstruída a cada dia, com novas cores e texturas.
Luiza é como a primavera, que chega devagar, depois de uma longa estação fria e melancólica. E ocupa todo o espaço, trazendo flores e odores inebriantes. É como as margaridas em uma manhã ensolarada. E é na delicadeza de sua simplicidade que ela é incomparavelmente bela.
Cristalina Luiza. Tão delicada quanto seus vitrais. Tão frágil quanto a vida vista das janelas da sala-de-estar.