11.23.2006

(A VISITA-Continuação...)

Eles eram assim, inconvenientes como todo bom parente que se preze. Haviam chegado há poucas horas e já se transformaram no pesadelo da pequena Clara, que se via imobilizada naquela sala, menor a cada segundo.
Chegava a noite e aquela visita parecia chegar ao fim, pelo menos era o que Clara queria. Foi quando a cozinheira avisou que o jantar estava servido. Todos da casa sentaram-se nos lugares de sempre. A madrinha sentou-se ao lado de Ivete e o padrinho, para o espanto de todos e horror da afilhada, sentou-se à cabeceira.
Como ousava?!
Com um peso no olhar, a mãe conteve a menina, que explodia de raiva e tristeza. A mãe também não gostara da atitude mal-educada do compadre, mas, como boa anfitriã, relevou a indelicadeza.
Todos comeram, ouvindo os conselhos dispensáveis do padrinho, que falava pelos cotovelos e causava náuseas na pequena.
Após o jantar, as visitas tomaram mais um cafezinho e despediram-se. A madrinha apertou forte as bochechas de Clara mais uma vez e o padrinho apenas estendeu a mão para dar-lhe a benção.
Clara ficou na varanda, vendo o carro sumir no horizonte: queria ter certeza de que haviam ido embora.
A mãe a chamou para dentro, queria evitar um resfriado – a menina sempre tinha o nariz escorrendo. Ao entrar, pediu a benção à mãe e foi deitar-se.
Ivete encontrou Clara já adormecida, à meia luz, abraçada ao retrato do pai. Beijou-lhe a face e em sua testa fez o sinal da cruz. Desligou a luz do abajur e deixou a porta entreaberta, permitindo que um feixe de luz iluminasse o leve sorriso que Clara inconscientemente ostentava.
O relógio já marcava 7 da manhã e a menina acordara imensamente alegre – havia tido um pesadelo à noite passada e estava feliz por tudo não ter passado de um sonho ruim.
Correu para a praia e, como de costume, rodopiava na areia com o cabelo no rosto. Usava sua saia rodada que rodava rodava com ela e com a brisa da praia. Parou de repente, meio tonta. Era a mãe que gritava seu nome. Lembrou-se do pesadelo que tivera. Clara deu as costas para a casa e caminhou em direção ao mar. A mãe continuava a chamar por ela, que se perdeu entre as ondas.

11.14.2006

A VISITA

Caminhava na ponta dos pés. Toda meiguice de menina. Sua saia rodada rodava ao sopro do vento e ela soltava gargalhadas, enquanto corria sem rumo pela praia, logo cedo.
Os pés, minúsculos, roçavam a areia, que lhe cobria o corpo inteiramente. Seus olhos negros, profundos, enchiam-se de lágrimas na tentativa de olhar o sol, que irradiava sublime aquela manhã. Definitivamente, acordara feliz.
Ouviu sua mãe a chamar. Correu em direção ao quintal, perdeu-se entre as roupas no varal e dançou um instante com elas. Podia sentir-se suspensa, como os lençóis que bailavam ao sopro da brisa.
A mãe gritou uma vez mais seu nome. O chão nunca pareceu fugir-lhe tanto. Deixando pra trás a leveza do momento, dirigiu-se à casa um tanto zangada: a mãe sempre interrompia sua abstração!
_ Mãe! Disse, com toda a birra de criança mimada.
A mãe a repreendeu com o olhar.
_ Venha tomar a benção de seus padrinhos!
Clara surpreendeu-se. Não via os padrinhos desde o batizado e, como na ocasião, era muito pequena, podia-se dizer que nem mesmo os conhecia. Não fazia questão de conhecê-los agora. Queria mesmo era correr pela praia ou entre os lençóis no varal. Perder-se de sua mãe, da casa, das obrigações com a família... E neste momento, dos padrinhos.
Não entendia por que tinha de ter tanta consideração com pessoas que nunca antes haviam dado notícias. E se acontecesse alguma coisa terrível com sua família? Onde estariam os padrinhos que, pela tradição, deveriam acolhê-la? Ficou extremamente zangada, entortando os lábios, como de costume. Tomou a benção e saiu de mansinho para seu quarto.
A irmã surgiu de repente e a mandou vestir o vestido cor-de-rosa.
_ Mamãe mandou! Falou com a autoridade de irmã mais velha.
Clara odiava o vestido cor-de-rosa. Odiava a cor, o vestido, o modo como ficava parecendo uma bonequinha de porcelana colocada na vitrine. Ela só queria correr pela areia, com sua saia rodada que rodava rodava rodava.
Ao voltar para a sala, encontrou a mãe e os padrinhos sentados a tomar o cafezinho-das-visitas. Ficou ao lado da mãe, o olhar baixo para não fitar aqueles seres estranhos que invadiam sua rotina sem ao menos pedir licença.
A madrinha, uma mulher gorda e sorridente, de bochechas rosadas de pó, caminhou em sua direção e a puxou para sentar-se em seu colo.
Quis, desesperadamente, fugir, mas a mulher a prendeu rapidamente entre seus braços. Não pôde fazer nada. Estava presa naquela teia de gordura e flacidez. Mostrava os dentes, amarelados pelo café, entre o riso solto e apertava forte as bochechas da menina, que via a irmã desdenhar da infame situação em que se encontrava.
A estranha elogiava-lhe o vestido cor-de-rosa e tecia comentários inoportunos sobre seu cabelo.
_ Mas este cabelo está precisando de uma hidratação! Veja como é seco de sol e mar! Ivete, não podes deixar a menina solta pela praia!
Como ousava dize tamanho absurdo?! Acabava de chagar e já se achava no direito de pôr o bedelho em todo o lugar!
A pequena Clara olhou para a mãe com os olhinhos cheios de cólera. A mãe retribuiu apenas com um sorriso amarelo, tentando disfarçar o desconforto.
Foi então que Judite, a cozinheira, adentrou à sala com uma bandeja de biscoitos. Clara pôde ver-se livre daqueles braços repugnantes, que se moviam agora em busca de comida.
Era horrível aquela visão! Podia ver o alimento dentro daquela boca imensa e as migalhas, que saltavam para fora dela, enquanto falava sem parar.
Nesse instante, o padrinho, que se mantinha quieto até então, começou uma peregrinação pela sala.
Era um homem pálido, magricela, com ar aristocrático. Olhava a casa, ao seu redor, com certa curiosidade, o que causava desconforto à família de Clara. Depois de algum tempo em silêncio, o homem com nariz empinado sentencia:
_ Esta casa precisa de uns reparos. Uma pintura aqui, uns retoques ali, nada que um homem de visão não possa resolver.
Clara deu um salto do sofá, mas a mãe a segurou firme, apertando seu braço como repreensão, antes que ela pudesse dizer o que estava entalado em sua garganta. Aquele homem detestável atrevia-se ao ponto de achar-se o dono daquele lar, talvez até de tomar aquela pequena família como sua e ser o “homem da casa”! Ninguém jamais tomaria o lugar do pai, falecido havia um ano. A cabeceira da mesa permanecia imaculada, sua presença era ainda viva demais naquele lugar e assim seria pra sempre, pensava Clara.
(Continua...)