10.30.2006

Para Ana Paula

Ana Paula, certa vez, me contava sobre suas estripulias de menina de Açailândia. Fiquei encantada com o saudosismo que havia em suas palavras.
A menina da rodoviária

Gostava de encontros e despedidas. Por isso ia sempre à rodoviária. A mãe inúmeras vezes brigava com a menina, tinha medo de, algum dia, entrar num ônibus e perder-se em outras rodoviárias.
Catarina vivia ali, no meio de desconhecidos, vindos de perto e de longe. Era um lugar sujo e fedia a maior parte do tempo a frango e fritura. Somente de manhã bem cedo o aroma era agradável. As moças do café preparavam uma bebida bem forte, que exalava pela rodoviária inteira, e enrolavam o beijú de tapioca com coco, que dava água na boca em todos que passavam por lá nesse horário. Era realmente uma delícia as manhãs na rodoviária de Açailândia.
Quando chovia, as goteiras tornavam o ambiente ainda mais decadente. As pessoas se espremiam umas contra as outras nos poucos espaços secos que havia. E a piçarra vermelha que rodeava a velha rodoviária se transformava em um lamaçal escarlate, que coloria a paisagem cinza de Açailândia, nos dias de chuva.
As crianças corriam e esbarravam nas bagagens e caixas, espalhadas pelo chão. Riam e choravam a cada reencontro e a cada triste despedida. Os olhinhos mergulhados em lagoas salgadas que sucumbiam ao adeus ou até logo de familiares e amigos. Elas só extravasavam o que as gentes grandes teimavam em abafar pelas plataformas da rodoviária.
Catarina fez muitos amigos ali. Pessoas que revia uma vez ou outra quando, de passagem, saltavam na cidade. Outras, porém, nunca mais encontrou e deixaram apenas saudade na pequena viajante. “Pequena viajante”. Era assim que a chamavam, zombando de seu estranho prazer em perder horas a fio na rodoviária da cidade. Horas que eram marcadas por um grande, sujo e velho – como tudo ali, aliás! – relógio de parede. Pareciam correr lentamente aqueles ponteiros, tornando os dias naquele pedaço de Açailândia ainda mais enfadonhos.
Quando não chovia, o sol queimava de maneira impiedosa. Os velhos desfilavam com seus chapéus de palha e os mais jovens com bonés de algum candidato da última eleição. O suor escorria por seus rostos e corpos semicobertos. Os músculos se contorciam enquanto carregavam malas, caixas ou algum outro peso, em troca de centavos.
Apesar de tudo, a rodoviária era para Catarina um lugar mágico. Os mais incríveis espetáculos podiam se ver naquele lugar: a domadora de galinhas, o equilibrista (de malas)... Mas o que mais encantava Catarina eram os gritadores. "Teresina-Piauí, quem vai, quem vai?!", "Santa Inês, aqui, aqui!!". Funcionários das empresas rodoviárias que vendiam a gritos bilhetes de passagem, ou ainda homens que berravam na rodoviária em busca de passageiros para transporte alternativo. Lotavam ônibus, vans, paus-de-arara, todo e qualquer transporte.
Catarina sonhava um dia gritar assim também e encaminhar aquelas pessoas a seus destinos, quase como deus. Ficava encantada com aqueles homens, suas vozes fortes e poderosas. Não era só gritar, tinha a simpatia, as rimas, a entonação certa.
Queria mesmo entrar em cada ônibus que passava pela rodoviária e conhecer o mundo inteiro. Sonhava com este dia: sua mãe ficaria chorando e acenando da plataforma número 05. Ela seguiria estrada a fora, conversando com a senhora sentada ao seu lado. Logo depois de sonhar com tudo isso, olhava ao redor e lá estava ela, de volta à velha rodoviária de Açailândia. Temia nunca sair dali. Como sua mãe, que ainda esperava pelo marido, que um dia pegou o ônibus para a cidade grande, com a promessa de dar a ela e aos filhos uma vida melhor.
A menina crescia assim, ali, envolta em cheiro de frango e frituras, rodeada de homens suados e sem camisa, carregando peso, naquele lamaçal de janeiro-sangue, ouvindo gritos desesperados: São Luís, últimas vagas! Quem vai, quem vai?!
Foi ouvindo esses gritos que Catarina subiu no ônibus. Era fim de tarde, as luzes da cidade começavam a iluminar as ruas esburacadas e conferiam uma cor alaranjada à noite que chegava. A cidade estava um pouco vazia. Havia chovido aquele dia. A mãe e o irmão de Catarina acenavam para ela, que os via da janela. Viu sua mãe chorar um pouco, como em seus sonhos de menina. Sentiu um aperto no peito. Engraçado: sempre achou que sentiria um alívio ao deixar aquele lugar, a rodoviária, os homens suados, o odor de frango e frituras.
O ônibus começava a percorrer as ruas da cidade rumo à capital. Catarina via a paisagem, que aprendera a admirar, ficar para trás, como sua família e os pensamentos de menina. A pequena viajante já não era tão pequena assim, mas ainda guardava consigo alguns medos e questionamentos. O que haveria para além dos limites de Açailândia?
Não era uma senhora que viajava ao seu lado, mas um senhor de feição rabugenta, com que ela não iria se atrever a conversar. Ficou calada, vendo a rodoviária se distanciar cada vez mais. Tudo era despedida. Até a cidade parecia dizer: “Tchau, Catarina! Até!”.

10.11.2006

Tenho tido vontade de ler e reler certas linhas. Uma doce melancolia me invade meio sem porquê. Tenho tido momentos agradáveis que não explicariam essa sensação que me toma agora. Talvez seja só o meu eu dizendo que ainda é.
Foto: Rai
Intervenção: S.Q.C.
Um pedaço do Timor
UM DIA A MAIS

um dia a mais
quisera eu ter
para correr pelos campos
mergulhar nos mares da minha vida
e só então
depois
naufragar em alguma praia...
para sempre esquecida.